segunda-feira, 18 de julho de 2011

CARTA A UMA SENHORA

A garotinha fez esta redação no ginásio:
“Mammy, hoje é dia das Mães e eu desejo-lhe milhões de felicidades e tudo mais que a Sra. sabe. Sendo hoje o dia das Mães, data sublime conforme a professora explicou o sacrifício de ser Mãe que a gente não está na idade de entender mas um dia estaremos, resolvi lhe oferecer um presente bem bacaninha e fui ver as vitrinas e li as revistas. Pensei em dar à Sra. o radiofono Hi-Fi de som estereofônico e caixa acústica de 2 alto-falantes amplificador e transformador mas fiquei na dúvida se não era preferível uma TV legal de cinescópio multirreacionário som frontal, antena telescópica embutida, mas o nosso apartamento é um ovo de tico-tico, talvez a Sra. adorasse o transistor de 3 faixas de ondas e 4 pilhas de lanterna bem simplesinho, levava para a cozinha e se divertia enquanto faz comida. Mas a Sra. se queixa tanto de barulho e dor de cabeça, desisti desse projeto musical, é uma pena, enfim trata-se de um modesto sacrifício de sua filhinha em intenção da melhor Mãe do Brasil.   

Falei de cozinha, estive quase te escolhendo o grill automático de 6 utilidades porta de vidro refratário e completo controle visual, só não comprei-o porque diz que esses negócios eletrodomésticos dão prazer uma semana, chateação o resto do mês, depois encosta-se eles no armário da copa. Como a gente não tem armário da copa nem copa, me lembrei de dar um, serve de copa, despensa e bar, chapeado de aço tecnicamente subdesenvolvido. Tinha também um conjunto para cozinha de pintura porcelanizada fecho magnético ultra-silencioso puxador de alumínio anodizado, um amoreco. Fiquei na dúvida e depois tem o refrigerador de 17 pés cúbicos integralmente utilizáveis, congelador cabendo um leitão ou peru inteiro, esse eu vi que não cabe lá em casa, sai dessa!

Me virei para a máquina de lavar roupa sistema de tambor rotativo mas a Sra. podia ficar ofendida deu querer acabar com a sua roupa lavada no tanque, alvinha que nem pomba branca, Mammy esfrega e bate com tanto capricho enquanto eu estou no cinema ou tomo sorvete com a turma. Quase entrei na loja para comprar o aparelho de ar condicionado de 3 capacidades, nosso apartamentinho de fundo embaixo do terraço é um forno, mas a Sra. vive espirrando, o melhor é não inventar moda.

Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liqüidificador de 3 velocidades, sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de espremer laranja, a máquina de tricô faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz muito mais. Um secador de cabelo para Mammy! gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a Sra. não é desses luxos, e a poltrona anatômica me tentou, é um estouro, mas eu sabia que a minha Mãezinha nunca tem tempo de sentar. Mais o quê? Ah sim, o colar de pérolas acetinadas, caixa de plástico perolado, par de meias, etc. Acabei achando tudo meio chato, tanta coisa para uma garotinha só comprar e uma pessoa só usar, mesmo sendo a Mãe mais bonita e merecedora do Universo. E depois, Mammy, eu não tinha nem 20 cruzeiros, eu pensava que na véspera deste Dia a gente recebesse não sei como uma carteira cheia de notas amarelas, não recebi nada e te ofereço este beijo bem beijado e carinhosão de tua filhinha Isabel.”

(CARLOS  DRUMMOND DE ANDRADE )
Texto extraído do livro Crônicas 5 – Coleção Para Gostar de Ler/ São Paulo: Ática. 2005


ANÁLISE



Conversa fiada de uma menina, seriedade nenhuma, um desabafo ingênuo, seria mesmo? Ledo engano! Por trás de um discurso inocente, Drummond  provoca uma critica social. Trata-se de uma extraordinária crônica que a princípio nos conta uma "''historinha"   sem maiores consequências, num tom pra lá de leve,  entretanto é capaz de fazer-nos sentir coisas grandiosas. Ao mesmo tempo que ironicamente questiona valores da sociedade impostos pelo capitalismo de uma forma tão profunda... 
Ao lançar mão de uma personagem infantil, o autor capta ainda mais a simplicidade, o bom humor, a sensibilidade de uma menininha que  sem nenhum  dinheiro consegue desfilar na imaginação os vários presentes que gostaria de dar a sua mãe no seu dia. Até faz-nos acreditar que de fato os daria, se não fosse um pequeno detalhe, não é? 
É como se ela tivesse do lado de fora de uma vitrine imensa, olhando todos os objetos maravilhosos, eletrodomésticos, eletroeletrônicos que solucionariam todos os problemas da casa, quiça, da vida daquela mãe, tão assoberbada de afazeres infindáveis...
Mas que, na verdade, quem dá esses superpoderes aos tais presentes é a propaganda  que cria aspirações e necessidades transformando-os em bens ideais para as pessoas. Pura invenção! De quem?  Fruto da sociedade de consumo que cruelmente esbanja o ter a todo custo, só quem tem, faz parte dela... Aos outros resta apenas o olhar invejoso e inacessível...por saber que a falta de dinheiro os separa dos outros...ou então, os valores sentimentais, como um beijo carinhoso desta filha na sua mãe é tudo o que sobra...ou o que é suficiente...